sexta-feira, 4 de junho de 2010

Como vais Avó?

Como vais avó?

Sabes, tento sempre falar contigo desta forma. Mas o preço que tenho que pagar, o valor que me é cobrado é sempre excessivo. O teu silêncio, a tua falta de existência. Confunde-me. E o desengano por não me retribuíres com a tua voz respostas aos meus lamentos, às minhas perguntas e aos meus desabafos sufoca-me de uma forma permanente.
Cada vez mais sinto a falta que me fazes…o desespero por não te conseguir ver ou ouvir… as tuas palavras… o teu olhar
…mas sem dúvida que essa culpa é só minha. Sim, porque tu sempre foste uma crente e eu não. Continuo a ser um herege!
Lembras-te quando me levavas o lanche à escola? Todos os dias. Não falhavas nunca… Estavas sempre lá à minha espera…E eu sorria quando via que também te provocava um sorriso assim que percebias que ia ao teu encontro, que estava a chegar.
Lembras-te das nossas tardes de culinária, em que me ensinavas a fazer bolos, em que me permitias que te ajudasse e que me fizeste descobrir o quanto era divinal percorrer a massa antes de estar cozida com os meus dedos?
Recordas-te dos nossos jogos de cartas, presumo que fossem de bisca, acompanhados de chá li Congo preto e do pão-de-ló que tínhamos acabado de fazer. Dos nossos jogos de mãos à sardinha, e do quanto ríamos os dois?
Lembras-te, mesmo com os teus parcos recursos, dos cromos e das cadernetas que me compravas…das amoras doces em que me iniciaste?
Recordas-te das excursões em que me levavas com as tuas amigas e que me fizeram até hoje não conseguir perder o gosto por viajar, por ir ao encontro com um sorriso nos lábios do que não conheço?
Lembras-te do quanto vibrávamos os dois quando víamos futebol, preferencialmente o Benfica, ainda na tua televisão sem cores, e gritávamos extasiados e nos abraçávamos loucamente a cada golo?
Recordas-te dos teus resgates de quando fugia daquele mundo horrível no qual era obrigado a estar com os meus pais? E tu acolhias-me e protegias-me como uma mãe protege um filho.
Lembras-te de quando te lamentavas para mim de não me poderes dar o que os outros avós davam? Eu lembro-me de já nessa altura me lembrar que me davas mais que qualquer neto poderia querer…que qualquer outra avó ou avô poderia dar…e ainda hoje não o consigo esquecer.
Recordas-te o quanto te sentias orgulhosa quando as professoras diziam que eu era o melhor aluno e tu contavas a toda a vizinhança o “feito”? E eu…ficava feliz só por te ver feliz.
Lembras-te o quanto desdenhavas das namoradas que tive e que dizias que todas tinham que passar o crivo da tua avaliação e o quanto me fazias sorrir com os argumentos que rebuscadamente arranjavas?
Recordas-te das saudades que sentíamos um do outro nas férias de Verão em que me tinhas que dividir com os avós rivais…”os ricos”? Mas que nunca me foram capazes de dar o que só tu poderias dar.
Lembras-te de me repreenderes por te telefonar só uma vez por semana nessas mesmas férias? De me encheres de perguntas sobre como me tratavam, se comia bem, se tinha roupa, se estava bem…se sentia saudades tuas?
Recordas-te dos nossos abraços quando regressava? Eu lembro-me, e dava tudo o que tenho para sentir esses teus abraços e esses beijos na minha face, na altura, ainda imberbe, novamente.
Lembraste de me ensinares, mesmo sem saberes escrever, que a honra e os valores humanos são as coisas mais importantes que nos definem enquanto pessoas?
Recordaste de me ensinares que não existe preço nem valor para certas coisas? Que a paz de espírito não tem valor monetário. Nem alto nem baixo, simplesmente não é comprável?
Lembras-te quando tão precocemente decidi sair de casa e foste a única que me disseste, imploraste e insististe para que ficasse contigo, para que não saísse de junto a ti?
Recordas-te o quanto me obrigavas a beber o leite, que naquela cafeteira de alumínio da minha infância, aquecias e me davas a beber? E eu lá o tragava. Só para não te fazer sentir mal, pois nunca fui um adepto desse néctar bovino.
Lembras-te das lágrimas que nos escorriam pela cara enquanto estávamos abraçados no dia do meu casamento? Lembras-te que foi exactamente aí que nos despedimos, e que eu te fiz promessas que nunca consegui cumprir?
Nunca mais te visitei com a regularidade com que prometi que faria, nunca mais estive presente como jurei que estaria…Nunca mais consegui ser para ti o que já tinha sido…nunca mais.
Gostava de acreditar no teu deus, nos teus santos, pois assim teria a certeza que me ouvias…que conseguirias ler o que escrevo.
Nestas viagens intermináveis que faço, falo tanto contigo, conto-te tantas coisas que nunca te disse quando me podias ouvir e, em simultâneo, não consigo entender como, de que maneira me podes ouvir.
Da mesma forma que no teu adeus, e no meu adeus a ti avó… me custou tanto ter que parar de te abraçar, de te beijar a pele gélida naquele início de tarde de Dezembro…acho que se pudesse ainda agora estaria lá a abraçar-te…pois sabia que era o nosso adeus definitivo.
O amor incondicional que tivemos um pelo outro não é explicável por palavras, letras ou outra qualquer coisa tangível. Era intemporal, sem distâncias. Quando nos encontrávamos não havia lugar a cobranças… Só havia tempo. Tempo para termos tempo para nós. Nem que fosse para saborearmos o silêncio um do outro.

Nuno Gusmão

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